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sábado, 19 de junho de 2010
J.C. Ryle - Santidade: A Necessidade de Santidade
A NECESSIDADE DE SANTIDADE
Devemos ser santos porque sem a santidade na terra nunca estaremos preparados para desfrutar do céu. O céu é um lugar santo. O Senhor do céu é um Ser santo. Os anjos são criaturas santas. A santidade está estampada em tudo quanto existe no céu. O livro de Apocalipse expressa: “Nela nunca jamais penetrará cousa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e mentira!” (Ap 21.27).
Apelo solenemente a todos quantos lêem essas páginas: como poderemos nos sentir felizes e à vontade no céu, se morrermos destituídos de santidade? A morte não opera automaticamente alguma transformação. O sepulcro não impõe qualquer alteração. Cada indivíduo haverá de ressuscitar com o mesmo caráter com que deu seu último suspiro. Onde será o nosso lugar, se vivermos hoje estranhos à santidade?
Suponhamos por um momento que você tivesse a permissão de entrar no céu sem santidade. O que você faria? Qual prazer você poderia usufruir ali? A qual dentre todos os santos você se achegaria; ao lado de quem você se sentaria? Os prazeres dele não seriam seus prazeres, os gostos deles não seriam os seus gostos, o caráter deles não corresponderia ao ser caráter. Como você poderia sentir-se feliz, se não tivesse sido santo neste mundo?
Atualmente, talvez você prefira a companhia dos negligentes e dos descuidados, dos dotados de mente mundana e dos cobiçosos, dos farristas e dos que buscam prazeres, dos ímpios e dos profanos. Porém, não haverá tais tipos de pessoas no céu.
Atualmente, talvez você sinta que os santos de Deus são por demais rigorosos, solenes e sérios. Você prefere evitar a companhia deles. Você prefere evitar a companhia deles. Você não se deleita na sua companhia. Porém, não haverá outro tipo de companhia lá no céu.
Atualmente, talvez pense que a oração, a leitura da Bíblia e o cântico de hinos evangélicos seja algo enfadonho e melancólico, uma atividade estúpida, algo que pode ser tolerado vez por outra, mas não usufruído com satisfação. Talvez você considere o descanso dominical um fardo e uma canseira; você não poderia passar senão uma pequena fração deste tempo adorando a Deus. Lembre-se, entretanto, de que o céu será um interminável descanso dominical. Os seus habitantes descansarão ali, noite e dia, entoando hinos de louvor ao Cordeiro e exclamando: “Santo, santo, santo é o Senhor Deus, o Todo-poderoso”. Como é que um homem profano poderia encontrar prazer numa ocupação como essa?
Você imagina que uma pessoa profana se deleitaria em encontrar-se com Davi, Paulo e João, após uma vida inteira desperdiçada exatamente na prática daquilo contra o que eles falaram? Porventura, ele tomaria um doce conselho com esses personagens e descobriria que tinham muito em comum? Acima de tudo, você imagina que tal pessoa se regozijaria em encontrar-se com Jesus, o Crucificado, face a face, após ter se agarrado aos pecados por causa dos quais Ele morreu; depois de haver amado os seus inimigos e desprezado os seus amigos? Poderia tal pessoa pôr-se de pé diante de Cristo, com toda confiança, unir-se ao coro santo, dizendo: “Eis que este é o nosso Deus, em quem esperávamos, e ele nos salvará; este é o Senhor, a quem aguardávamos; na sua salvação exultaremos e nos alegraremos” (Is 25.9)? Antes, você não pensa que os lábios de uma pessoa profana se calariam de tanta vergonha, e que o seu único desejo seria ser expulso dali? Tal indivíduo se sentiria um estranho em uma terra desconhecida, uma ovelha negra em meio ao santo rebanho de Cristo. A voz dos querubins e dos serafins comporiam uma linguagem que ele não seria capaz de entender. O próprio ar lhe pareceria uma atmosfera irrespirável.
Não sei dizer o que outros pensariam a esse respeito, mas, para mim, é claro que o céu seria um lugar insuportável para um homem mundano. Não poderia ser de outro modo. As pessoas podem dizer, de maneira vaga: “Eles têm a esperança de chegar ao céu”. Entretanto, eles assim o dizem por não considerarem o que estão dizendo. Deve haver um certo preparo para a “herança dos santos na luz” (Cl 1.12). Nosso coração precisa estar sintonizado com essa herança. Para chegarmos ao descanso da glória, teremos de passar pela escola do treinamento na graça. Teremos de ser dotados de mente celestial, de gostos celestiais na vida que agora é, porquanto, de outro modo, jamais nos encontraremos no céu.
SANTIDADE- O PECADO
Aquele que desejar ter pontos de vista corretos sobre a santidade cristã terá de começar examinando o vasto e solene assunto do pecado. Terá de cavar bem fundo, se quiser construir um edifício bem alto. Um equívoco quanto a esse particular é extremamente prejudicial. Conceitos errôneos sobre a santidade geralmente advêm de idéias distorcidas quanto à corrupção humana. Não me desculpo por começar estes estudos acerca da santidade com algumas firmes declarações a respeito do pecado.
A verdade absoluta é que o correto conhecimento do pecado jaz à raiz de todo o cristianismo salvífico. Sem ele, doutrinas como justificação, conversão e santificação serão apenas “palavras e nomes” que não transmitem qualquer sentido à nossa mente. Portanto, a primeira coisa que Deus faz quando quer tornar alguém em uma nova criatura em Cristo é iluminar-lhe o coração, mostrando-lhe que ele é um pecador culpado. A criação material, segundo o livro de Gênesis, começou com a “luz”; isso também acontece no caso da criação espiritual. Deus mesmo “resplandeceu em nosso coração” mediante a obra do Espírito Santo, e então, a vida espiritual teve seu início (2 Co. 4.6). Pontos de vista mal definidos acerca do pecado são a origem da maioria dos erros, das heresias e das doutrinas falsas de nossos dias. Se um homem não percebe a natureza perigosa da doença de sua alma, ninguém poderá admirar-se de que ele se contente com remédios falsos ou imperfeitos. Acredito que uma das principais necessidades da igreja, neste nosso século, tem sido e continua sendo um ensino mais claro e completo sobre o pecado.
1. Começarei o assunto fornecendo uma definição de pecado. Naturalmente, todos estamos familiarizados com os termos “pecado” e “pecadores”. Com freqüência, dizemos que o “pecado” está no mundo e que os homens cometem “pecados”. Porém, o que queremos dizer com essas palavras e frases? Sabemos realmente? Temo que há muita nebulosidade e confusão mental quanto a esse particular. Permita-me tentar suprir a resposta da forma mais breve possível.
Afirmo, pois, que “pecado”, falando de modo geral, conforme declara o artigo nono da confissão de fé da nossa igreja, é “a falha e a corrupção da natureza de cada ser humano, naturalmente produzidas pela natureza de Adão em nós, pelas quais o homem muito se afasta da retidão original, pois faz parte de sua natureza inclinar-se para o erro, de tal modo que a carne sempre milita contra o espírito; e, assim sendo, o pecado merece a ira e a condenação de Deus em cada pessoa que nasce neste mundo”. Em suma, o pecado é aquela vasta enfermidade moral que afeta a raça humana inteira, em todas as classes e níveis, nas nações, povos e línguas — uma enfermidade da qual apenas um único homem nascido de mulher esteve isento. Preciso dizer que esse único Homem foi o Senhor Jesus Cristo?
Digo, ademais, que “um pecado”, falando mais particularmente, consiste em praticar, dizer, pensar ou imaginar qualquer coisa que não esteja em perfeita conformidade com a mente e a lei de Deus. Em resumo, segundo as Escrituras, “o pecado é a transgressão da lei” (1 Jo 3.4). O menor desvio interno ou externo de um absoluto paralelismo matemático com a vontade e o caráter revelados de Deus constitui um pecado e, imediatamente, nos torna culpados aos olhos de Deus.
Naturalmente, não preciso dizer, a qualquer um que lê a sua Bíblia com atenção, que um homem pode quebrar a lei de Deus em seu coração e em seus pensamentos, mesmo quando não há qualquer ato externo e visível de iniqüidade. Nosso Senhor resolveu a questão sem deixar dúvidas, ao proferir o Sermão do Monte (Mt 5.21-28). Até mesmo um de nossos poetas disse, com toda a verdade: “Um homem pode sorrir, sorrir e ainda ser um vilão”.
Novamente, não preciso dizer a um estudante cuidadoso da Bíblia que há pecados de omissão tanto quanto de comissão, e que pecamos, tal como diz o nosso livro de oração, ao “deixarmos de fazer as coisas que deveríamos fazer” tanto quanto ao “fazermos aquilo que não deveríamos”. As solenes palavras do Mestre, no evangelho de Mateus, também deixam a questão sem sombras de dúvidas. Ali se acha escrito: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber” (Mt 25.41-42). Foi uma declaração profunda e bem pensada do santo arcebispo Usher, pouco antes de sua morte: “Senhor, perdoa-me de todos os meus pecados, sobretudo dos meus pecados de omissão”.
Porém, penso que é necessário relembrar aos leitores que um homem pode cometer um pecado e, no entanto, fazê-lo por ignorância, julgando-se inocente, quando na realidade é culpado. Não consigo perceber qualquer garantia bíblica para a moderna afirmativa de que “o pecado não é pecado, enquanto não o percebermos e tomarmos consciência dele”. Pelo contrário, nos capítulos quarto e quinto daquele livro muito negligenciado, Levítico, bem como em Números 15, vejo Israel sendo distintamente instruído de que havia pecados de ignorância que tornavam as pessoas imundas e que precisavam ser expiados (Lv 4.1-35; 5.14-19; Nm. 15.25-29). E também encontro o Senhor ensinando expressamente que o servo que não soube da vontade do seu senhor, e não agiu conforme essa vontade, não será desculpado pela sua ignorância, mas castigado (Lc 12.48). Faríamos bem em relembrar que, ao fazer de nosso conhecimento e de nossa consciência miseravelmente imperfeitos a medida de nossa pecaminosidade, estamos pisando em terreno perigoso. Um estudo mais profundo do livro de Levítico nos faria muito bem.
2. Concernente à origem e fonte dessa vasta enfermidade moral chamada “pecado” também me sinto na obrigação de dizer algo. Temo que as idéias de muitos crentes professos quanto a esse particular, são tristemente defeituosas e doentias. Não ouso passar adiante sem um comentário a respeito. Portanto, fixemos em nossa mente que a pecaminosidade de um homem não começa pelo lado de fora e sim pelo lado de dentro. Também não resulta de mau treinamento nos primeiros anos de vida. Não se adquire com más companhias e maus exemplos, conforme alguns crentes fracos costumam dizer. Não! Trata-se de uma enfermidade de família, que herdamos dos nossos primeiros pais, Adão e Eva, e com a qual todos já nascemos. Criados “à imagem de Deus” e inocentes a princípio, nossos pais caíram da justiça original e tornaram-se pecaminosos e corruptos. E, desde aquele dia, homens e mulheres nascem segundo a imagem de Adão e Eva decaídos, herdando um coração e uma natureza inclinados ao pecado – “por um só homem entrou o pecado no mundo”; “o que é nascido da carne é carne”; “éramos, por natureza, filhos da ira”; “o pendor da carne é inimizade contra Deus”; “do coração dos homens é que procedem [naturalmente, como de uma fonte] os maus desígnios, a prostituição, os furtos”. (Rm 5.12; Jo 3.6; Ef 2.3; Rm 8.7; Mc 7.21). O mais lindo bebê do mundo, que se tornou o raio-de-sol de uma família, não é, como sua mãe o chama com muito amor, um “anjinho” ou um “inocentinho”, e sim um “pecadorzinho”. Infelizmente, enquanto jaz sorrindo no seu berço, a criaturinha leva em seu coração as sementes de todo tipo de iniqüidade! Basta que a observemos com cuidado, conforme cresce em estatura e sua mente se desenvolve, e descobriremos nela uma incessante tendência para o que é mau, e uma grande hesitação quanto ao que é bom. Poderemos ver nela os botões e os germens do engano, do mau temperamento, do egoísmo, da voluntariedade, da obstinação, da cobiça, da inveja, do ciúme, da paixão – tudo o que, se alimentado e deixado à vontade, prolifera com dolorosa rapidez. Quem ensinou essas coisas à criança? Onde as aprendeu? Só a Bíblia pode responder a essas perguntas! Dentre todas as coisas tolas que os pais dizem sobre seus filhos nenhuma é pior do que a declaração comum: “No fundo, meu filho tem um bom coração. Ele não é o que deveria ser; apenas caiu em más companhias. As escolas são lugares ruins. Os professores negligenciam as crianças. Contudo, no fundo, ele tem um bom coração”. A verdade, infelizmente, é exatamente o contrário. A primeira causa de todo pecado jaz na corrupção natural do próprio coração da criança e não na escola.
3. No tocante à extensão dessa vasta enfermidade moral do homem, chamada pecado, cuidemos para não errar. A única base segura é aquela dada pelas Escrituras. “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”; “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Gn 6.5; Jr 17.9). O pecado é um mal que permeia e percorre todas as partes de nossa constituição moral, bem como cada faculdade de nossa mente. A compreensão, os afetos, o poder de raciocínio, a vontade; tudo está, em certa medida, infeccionado pelo pecado. A própria consciência está tão cega que dela não se pode depender como guia seguro. Ela tanto pode conduzir o homem para o erro quanto para o que é certo, a menos que seja iluminada pelo Espírito Santo. Em suma, “Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas” (Is 1.6). O mal pode ser velado sob uma fina cortina de cortesia, polidez, boas maneiras ou decoro exterior; mas jaz profundamente em nossa constituição.
Admito plenamente que o homem tenha ainda qualidades grandes e nobres e que demonstre imensa capacidade nas artes, ciências e literatura. Porém, permanece o fato de que nas coisas espirituais o homem está totalmente “morto”, destituído de qualquer conhecimento, amor ou temor a Deus. As excelências do homem estão de tal modo entremeadas e mescladas com a corrupção que o contraste somente põe em destaque a verdade e a extensão da queda. Que uma e a mesma criatura seja tão elevada em algumas coisas e tão vil em outras; tão grande, mas tão pequena; tão nobre, mas também tão envilecida; tão notável em sua concepção e execução de coisas materiais, mas tão baixa e rasteira em seus afetos; capaz de planejar e erigir edifícios como aqueles de Carnaque e Luxor, no Egito ou o Partenon de Atenas e, no entanto, adorar deuses e deusas imorais, pássaros, feras e répteis; que possa produzir tragédias como as de Ésquilo e Sófocles e histórias como as de Tucídides, e, no entanto, ser escrava de vícios abomináveis como aqueles descritos no primeiro capítulo da epístola aos Romanos. Tudo isso tem servido de profunda perplexidade para aqueles que zombam da “Palavra escrita de Deus”, escarnecendo de nós como “bibliólatras”. Porém, esse é um nó que podemos desatar com a Bíblia na mão. Podemos reconhecer que o homem tem todos os sinais de um templo majestoso em sua pessoa; um templo no qual Deus antes habitou, mas que agora jaz em completa ruína; um templo no qual uma janela despedaçada aqui ou uma entrada acolá, ou uma coluna derrubada ali adiante ainda nos dá uma pálida idéia da magnificência do plano original, embora, de uma extremidade à outra, tenha perdido a sua glória e decaído de seu exaltado estado anterior. De modo que afirmamos que coisa alguma soluciona o complicado problema da condição humana, senão a doutrina do pecado original ou inato e os esmagadores efeitos da queda.
Ademais, lembremo-nos de que cada parte do mundo dá testemunho do fato que o pecado é a enfermidade universal de toda a humanidade. Pesquisemos o globo de leste a oeste e de um pólo ao outro, rebusquemos todas as nações de todos os climas, nos quatro quadrantes da terra, procuremos em cada classe e nível social de nosso próprio país, do mais elevado ao mais humilde, sob cada circunstância e condição; o relatório será sempre o mesmo. As mais remotas ilhas no oceano Pacífico, completamente separadas da Europa, da Ásia, da África e da América, fora do alcance do luxo oriental e da arte e literatura ocidentais; ilhas habitadas por povos que ignoram livros, dinheiro, vapor e eletricidade; não contaminados pelos vícios da civilização moderna – existentes nestas ilhas remotas, quando descobertas, têm sido encontradas as piores formas de concupiscência, de crueldade, de engodo e de superstição. Se seus habitantes não conhecem outra coisa, pelo menos conhecem o pecado! Por toda a parte, o coração humano é enganoso “mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9). Da minha parte, desconheço prova mais decisiva da inspiração do livro de Gênesis e do relato mosaico sobre a origem do homem do que o poder, a extensão e a universalidade do pecado. Se admitirmos que a humanidade inteira deriva-se de um único casal e que esse casal caiu no pecado, conforme nos diz Gênesis 3, o estado da natureza humana por toda parte pode ser facilmente explicado. Mas, se negarmos esse fato, conforme muitos o fazem, imediatamente nos veremos envolvidos com dificuldades inexplicáveis. Em suma, a uniformidade e a universalidade da corrupção humana supre uma das mais incontestáveis instâncias das enormes dificuldades que os incrédulos têm de enfrentar.
Afinal, estou convencido de que a maior prova da extensão e do poder do pecado é a persistência com que ele se apega ao homem, mesmo depois deste ser convertido e tornar-se alvo das operações do Espírito Santo. Usando a linguagem do artigo nono: “Essa infecção da natureza permanece – sim, mesmo nos regenerados”. Tão profundamente implantadas estão as raízes da corrupção humana que, mesmo depois de termos sido regenerados, renovados, lavados, santificados e justificados, feitos membros vivos de Cristo, essas raízes permanecem vivas no fundo de nosso coração. Tal qual o mofo nas paredes de uma casa, nunca nos livraremos delas, enquanto não for dissolvida esta casa terrestre deste nosso tabernáculo. Sem dúvida, o pecado não mais exerce domínio no coração do crente. Está contido, controlado, mortificado e crucificado pelo poder expulsivo do novo princípio da graça divina. A vida do crente é uma vida de vitória e não de fracasso. Mas os próprios conflitos que continuam em seu peito, a luta na qual ele se vê empenhado a cada dia, a vigilância que ele é forçado a exercer sobre seu homem interior, a guerra entre a carne e o espírito, os “gemidos” íntimos que ninguém conhece, senão aquele que os experimenta – tudo isso testifica da mesma grande verdade, tudo mostra o enorme poder e a vitalidade do pecado. Poderoso, de fato, deve ser o adversário que mesmo depois de crucificado, continua vivo! Feliz é o crente que compreende isso e não tem confiança na carne enquanto se regozija em Cristo Jesus; e ao mesmo tempo em que diz: “Graças a Deus que nos dá a vitória”, nunca se esquece de vigiar e ora para não cair em tentação!
4. Acerca da culpa, da vileza e da ofensa do pecado aos olhos de Deus, minhas palavras serão poucas. Digo “poucas” prudentemente. Não penso que, devido à natureza dessas coisas, o homem mortal possa perceber toda a imensa pecaminosidade do pecado aos olhos do Deus santo e perfeito, a quem teremos de prestar contas. Por um lado, Deus é o Ser eterno que “aos seus anjos atribui imperfeições”, em cuja vista “nem os céus são puros”. Ele é Aquele que lê os pensamentos e os motivos, e não só as ações, e que requer “a verdade no íntimo” (Jó 4.18; 15.15; Sl 51.6). Nós, por outro lado – criaturas pobres e cegas, hoje aqui e amanhã acolá, nascidos no pecado, cercados de pecadores, vivendo em uma constante atmosfera de fraqueza, enfermidade e imperfeição – não podemos formar senão os mais inadequados conceitos sobre a hediondez do pecado. Não dispomos de prumo para sondá-lo, e nenhuma medida pela qual possamos aquilatá-lo. Um cego não pode ver a diferença entre uma obra prima de Ticiano ou de Rafael e uma efígie de um presidente no verso de uma moeda. Um surdo não pode distinguir entre um apito soprado por uma criança e um órgão de catedral. Os próprios animais, cujo odor é bastante ofensivo, não têm a menor noção de que são tão mau-cheirosos e nem parecem tais uns para com os outros. E o homem, o homem caído, segundo creio, não tem noção do quão vil é o pecado aos olhos de Deus, cujas obras são absolutamente perfeitas – perfeitas sem importar se as examinamos pelo telescópio ou pelo microscópio; perfeitas tanto na formação de um gigantesco planeta como Júpiter, com seus satélites, que marca o tempo em até milésimos de segundo enquanto gira em torno do sol quanto na formação do mais minúsculo inseto que se arrasta pelo chão. Não obstante, fixemos na mente, com firmeza, que o pecado é aquela “coisa abominável” a qual Deus aborrece e que Deus é “tão puro de olhos que não pode ver o mal”; e que qualquer que tropeçar “em um só ponto” da lei de Deus “se torna culpado de todos”; e que “a alma que pecar, essa morrerá“; e que “o salário do pecado é a morte”; e que Deus julgará “os segredos dos homens”; e que há um lugar onde nunca “morre o verme, nem o fogo se apaga”; e que “os perversos serão lançados no inferno”; e que “irão estes para o castigo eterno”, porquanto nos céus “nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e mentira” (Jr 44.4; Ha 1.13; Tg 2.10; Ez 18.4; Rm 6.23; 2.16; Mc 9.44; Sl 9.17; Mt 25.46 e Ap 21.27). Essas são, realmente, palavras tremendas, quando consideramos que foram escritas no Livro do Deus misericordiosíssimo!
Afinal de contas, nenhuma prova da amplidão do pecado é tão avassaladora e incontestável como a cruz da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, bem como toda a doutrina de sua substituição e expiação. Terrivelmente grave deve ser a culpa que não pode ser satisfeita por coisa alguma, senão pelo sangue do Filho de Deus. Pesadíssima deve ser a carga do pecado humano que fez Jesus gemer e suar gotas de sangue na agonia do Getsêmani, e clamar no Gólgota: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46). Estou convencido de que nada nos espantará tanto, quando despertarmos no dia da ressurreição, quanto a visão que teremos do pecado e o retrospecto que nos será dado de nossos próprios incontáveis defeitos e delitos.
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