É comum, em embates teológicos, a posição do adversário ser
menosprezada, ridicularizada e mal-interpretada. Se o menosprezo e
ridicularização forem provenientes da conclusão lógica da posição defendida,
isso não é de todo errado. Contudo, se a posição ora atacada parecer absurda
somente mediante uma má-interpretação da mesma, o opositor não é apenas
covarde e ignorante, mas também caluniador. E se a posição difamada for
uma doutrina bíblica, o caluniador é culpado também de blasfêmia.
Um problema comum, infelizmente, na análise que muitos autores
fazem de certas doutrinas ditas cristãs é a rápida rotulação de heresia sobre
tudo aquilo que diverge do que tais pessoas crêem. Algo errado, não é
necessariamente herético. Por exemplo, o arminianismo é heresia porque ele
tira a glória de Deus na salvação, e atribui ao homem, que é o grande
responsável pela sua própria salvação, pois tudo depende da sua “gloriosa”
decisão. O arminianismo também torna a Palavra de Deus mentirosa, pois
todos os textos que falam sobre eleição incondicional, graça irresistível,
expiação limitada e perseverança dos santos são menosprezados ou
distorcidos.
Contudo, esse não é o caso com todo erro doutrinário.
Para ilustrar o que foi dito acima, suponhamos que a Bíblia ensine que
podemos tocar toda sorte de hinos, contanto que os mesmos expressem as
doutrinas ensinadas na própria Bíblia. Contudo, sabemos que existem aqueles
que defendem a salmodia exclusiva, ou seja, que somente os Salmos da Bíblia
devem ser cantados no cântico congregacional. Assim, mesmo que alguém
discorde desses irmãos, tal pessoa nunca poderia chamar essa posição de
herética ou os seus defensores de hereges. Onde está a heresia deles? Em
exagerar o valor dos Salmos? É pecado supervalorizar a Palavra de Deus?
Aliás, é possível que supervalorizemos a Palavra de Deus? De forma alguma,
pois o seu valor é infinito e eterno. Dessa forma, qualquer pessoa que chame a
salmodia exclusiva de heresia, não é apenas um ignorante, mas talvez um
covarde (se distorce a mesma, para ter o que “refutar”), e com certeza um
blasfemo.
Quem acompanha as discussões teológicas no campo da escatologia,
seja em livros, na igreja ou entre amigos, certamente já sabe o que esse breve
artigo pretende questionar.
O pós-milenismo, a doutrina que ensina que Cristo virá após um
milênio glorioso na Terra, não é apenas ignorado, mas violentamente
criticado, e classificado como heresia perniciosa. É com pesar que reconheço
que muitos dos teólogos que admiro tomam essa atitude. E estou falando de
teólogos que defendem a Teologia Reformada, a mesma que outrora era
praticamente sinônima de pós-milenismo, visto que os seus principais
teólogos defendiam essa posição escatológica. Considerando o que o pósmilenismo
ensina, considero tais afirmações calúnias graves contra cristãos e
uma blasfêmia contra a Palavra de Deus e o próprio Deus.
Vejamos no que consiste o ensino do pós-milenismo, a fim de verificar
se ele é mesmo uma heresia, perniciosa para a Igreja de Cristo:
1) O pós-milenismo ensina que o Evangelho, que é o poder de Deus
para a salvação, terá sucesso em escalas mundiais, e influenciará toda a
sociedade humana. Por causa da influência do Cristianismo, o mundo gozará
de um grande período de paz e prosperidade. Por crer na depravação total do
homem, o pós-milenismo não crê que tais melhorias advirão da “evolução” do
homem, mas sim do poder de Deus, atuando mediante a Sua Palavra e o Seu
Espírito, regenerando corações, e sujeitando as nações à Cristo. Não obstante
muitos covardes dizerem que o pós-milenismo tem muito em comum com a
evolução, isso não passa de calúnia de quem comenta o que não conhece,
conforme podemos verificar analisando as obras de referência sobre o
assunto, quer antigas ou modernas. Embora nem todos serão salvos, o
Cristianismo será a norma da nossa sociedade, num tempo futuro
determinado por Deus.
Pergunta: É heresia crer que o Evangelho de Deus é tão poderoso
assim? É heresia crer que Deus pode converter e transformar a nossa
sociedade, ao ponto do Cristianismo verdadeiro ser dominante? É heresia crer
que Cristo continua conosco, ajudando-nos a cumprir a Grande Comissão, e
realmente salvando?
2) O pós-milenismo ensina que Jesus Cristo retornará pessoal e
visivelmente no final da história para julgar o mundo. Tal retorno será após o que chamamos de milênio, o período desde a primeira vinda de Cristo até a sua segunda vinda.
Pergunta: Qual é a heresia em se manter que Cristo virá após o
milênio? Amilenistas e pré-milenistas têm o direito de achar que estamos
errados nesse ponto, mas em que constitui a nossa heresia? Manter que algo
vem após o milênio é heresia? E porque o estado eterno das coisas, que todos
os cristãos defendem como algo vindo após o milênio, não é considerado
heresia?
3) O pós-milenismo ensina que a paz e a prosperidade que reinarão no
mundo serão resultados provenientes da conversão em massa de pessoas ao
Cristianismo. O Cristianismo não será apenas a crença comum, mas também a
prática. Em outras palavras, veremos o Cristianismo verdadeiro, que inclui a
prática da doutrina pregada.
Pergunta: Qual é a heresia em se esperar que o Evangelho produza os
frutos que são esperados mediante a sua pregação? É correto acreditar que o
Evangelho impactou profundamente a sociedade apenas nos primeiros
séculos da Igreja e na época da Reforma? Todas as outras eras da igreja estão
destinadas a terem igrejas cheias de hipócritas, que não vivem o que pregam?
Ortodoxia significa esperar e crer que cada vez mais teremos aqueles que
vivem o que pregam, mas cuja pregação são baboseiras irracionais e antibíblicas?
Cristo prometeu que Ele estaria conosco até a consumação de tudo,
e não há nada mais justo do crer nisso. Deus afirmou que a Sua Palavra não
voltará vazia, e prometeu entregar as nações a Cristo (Sl. 2:8), e a Sua Igreja
não se envergonha de crer nisso.
Há muitas outras coisas que o pós-milenismo ensina, mas as mesmas
serão omitidas por não constituírem doutrinas particulares dessa posição
escatológica. Por exemplo, os pós-milenistas crêem que os mil anos de
Apocalipse não devem ser interpretados literalmente, mas sim como
significando um grande período de tempo; contudo, essa é a mesma visão do
amilenismo. Ambos ensinam que Deus tem um único povo, constituído de
judeus e gentios, e que a Igreja não é um parêntese na história da humanidade,
mas sim algo projetado por Deus na eternidade, e presente no Antigo e no
Novo Testamento. Por causa dessas similaridades, é decepcionante ver as duras críticas que o pós-milenismo tem recebido da parte de amilenistas, o que
expõem a ignorância ou puro preconceito destes.
Diante de tudo isso, pergunto: onde está a heresia do pós-milenismo?
Crer num Deus grande demais? Crer numa Palavra excessivamente poderosa?
Crer num Evangelho eficaz? Crer que nada é impossível para Deus, muito
menos aquilo que Ele prometeu?
Seja qual for o fator motivador, não há justificativa bíblica nem racional
para rotular o pós-milenismo de heresia. Tal avaliação é procedente de uma
mente deturpada, que não sabe analisar fatos e doutrinas à luz da Escritura.
Alguns podem intentar com isso causar aversão nos cristãos a essa posição
escatológica (o que é comum vermos!), para que os mesmos encarem os
argumentos bíblicos e teológicos do pós-milenismo com pré-conceito e
avaliações (equivocadas) já formadas, mas isso também é pecado. E essa
aversão é uma das principais causas de caricaturas do pós-milenismo, pois
muitos acabam criticando o que não conhecem. É hilário ver que pessoas que
nunca leram uma obra completa sobre pós-milenismo criticam o mesmo,
como se já tivessem analisado e refutado essa posição à luz das Escrituras.
Caro leitor, coloque a mão na boca antes de proferir algo sobre uma
doutrina cujo suposto erro é atribuir poder e honra em excesso a Deus,
Cristo, o Espírito Santo e a Sua Palavra.
Se você é um pós-milenista, e possui amigos que criticam essa posição, pergunte se
eles já leram e estudaram com afinco um dos livros abaixo. Se não, peça para deixarem de
calúnias:He Shall Have Dominion: A Postmillennial Eschatology, de Kenneth L.
Gentry, Jr
Postmillenialism: An Eschatology of Hope, de Keith A. Mathison,
Thine is the Kingdom: A Study of the Postmillennial Hope, de Kenneth
L. Gentry (editor)
An Eschatology of Victory, de J. Marcellus Kik
Felipe Sabino de Araújo Neto.
Claro que o pós-milenismo não é uma heresia. Aliás, muito pelo contrário, é bastante coerente e viável